A escravidão africana no Brasil
Escravos e escravizados no Brasil colônia.
Os africanos trazidos para o Brasil
O que significa o termo “cultura afro-brasileira”? Que expressões dessa cultura foram criadas?
A partir do século XVI, milhões de africanos escravizados foram trazidos à força para o Brasil. Eles pertenciam a uma variedade de povos, que, no século XIX, foi classificada em dois grandes grupos linguísticos da família nigero-congolesa: banto e iorubá. Esses povos vieram de regiões onde hoje se localizam Nigéria, Costa do Marfim, Camarões, Angola, Congo, Tanzânia, Quênia, Moçambique, África do Sul, entre outros países africanos da atualidade.
Uma vez estabelecidos no Brasil, esses povos entraram em contato com indígenas e europeus que aqui viviam, construindo, juntos, uma cultura afro-brasileira. Assim, quando vamos a uma festa de Congada, assistimos a uma apresentação de capoeira, apreciamos um samba ou um maxixe, comemos um acarajé ou uma deliciosa canjica ou participamos de uma cerimônia do candomblé, por exemplo, estamos vivenciando expressões da cultura afro-brasileira.
O resultado desse fluxo migratório forçado de africanos escravizados está presente hoje na composição demográfica do nosso país. O Brasil tem a segunda maior população negra do mundo, inferior apenas à da Nigéria, na África. Segundo dados do Censo 2010, cerca de 97 milhões de brasileiros são pretos ou pardos. Por isso, estudar a história desses povos também é essencial para compreendermos nossa própria história.
O tráfico de escravizados para o Brasil (séculos XVI-XIX)
Fontes: CAMPOS, Flavio de; DOLHNIKOFF, Miriam. Atlas: história do Brasil. São Paulo: Scipione, 1993. p. 9; VICENTINO, Cláudio. Atlas histórico: geral e Brasil. São Paulo: Scipione, 2011. p. 48, 67 e 92.
Os iorubás e seus reinos
Os iorubás constituem um grande grupo étnico-linguístico da África Ocidental, representando cerca de 20% da população da atual Nigéria e parte da população do Togo, do Benin e de Serra Leoa. Fora da África, a cultura iorubá tem forte presença no Brasil e em Cuba.
A origem dos reinos iorubás, também chamados de nagôs, ainda é incerta. Há indícios arqueológicos de que eles floresceram ao sul do Rio Níger por volta do século IX, numa antiga população que tinha como centro a cidade de Ifé (que significa “o que é vasto”).
Os reinos iorubás estavam organizados em cidades-Estado independentes que mantinham relações comerciais entre si. Acredita-se que a figura do rei nas sociedades iorubás tenha surgido em Ifé, que nessa cidade era chamado Oni.
A cidade de Ifé era considerada sagrada para os iorubás. Ela servia de referência política para os outros reinos iorubás e funcionava como entreposto do comércio caravaneiro na África. Os mercadores paravam na cidade para descansar, reabastecer as caravanas e negociar produtos, como sal, contas de pedra, dendê, pimenta e escravizados.
Tigela de oferendas em madeira pintada, estatueta iorubá da região da Nigéria, século XX. Estatuetas feitas de madeira, terracota ou metal são o grande destaque da arte iorubá.
No século XVI, com a chegada dos europeus, Ifé entrou em declínio, enquanto outras cidades iorubás mais próximas do litoral ascenderam, favorecidas pelo comércio de ouro e escravizados com os estrangeiros.
Devotos do candomblé no terreiro Ilê Axé Alá Obatalandê, no município de Lauro de Freitas (BA), em 2014. Nas crenças iorubás, os orixás são entidades intermediárias entre o ser supremo, Olodumare, e os seres humanos. Trazido ao Brasil pelos negros iorubás, o culto aos orixás misturou-se aos cultos e tradições aqui encontrados e deu origem aos chamados cultos afro-brasileiros, como o candomblé.
Os bantos e o Reino do Congo
O termo “banto” designa cerca de quatrocentos grupos étnicos africanos cujas línguas têm uma origem comum. Os ancestrais desses povos viviam na fronteira dos atuais Nigéria e Camarões por volta de 3 a 4 mil anos atrás. No século XII, eles já haviam ocupado áreas da África Central até o sul e o leste do continente.
O Reino do Congo, um dos mais importantes reinos bantos, surgiu por volta dos séculos XIII e XIV em terras da África Centro-Ocidental. O reino estava dividido em províncias e pequenas aldeias e era controlado por um rei, chamado de mani congo (“espírito superior”).
A capital do Reino do Congo era M’Banza Congo. A cidade era uma praça forte, cercada de muralhas, e também um grande centro comercial. O comércio era a principal atividade econômica dos congoleses. Eles mantinham contatos comerciais com os cuxitas, os nilotas e mercadores árabes vindos do norte.
No século XV, após os primeiros contatos com os portugueses, o mani congo Nkuwu Nzinga se converteu ao catolicismo e foi batizado com o nome de D. João. A capital do reino passou a se chamar São Salvador do Congo. Iniciava-se, dessa forma, uma longa parceria comercial e política entre portugueses e congoleses, que tinha como centro o comércio de pessoas escravizadas.
Gravura representando Nkuwu Nzinga, mani congo batizado por missionários portugueses como D. João em 1491.
À medida que os portugueses garantiam o fornecimento de armamentos ao Reino do Congo, este se impunha sobre os povos vizinhos em sucessivas vitórias nas guerras locais. Essa situação também contribuiu para o aumento da captura de escravizados para o tráfico atlântico. Para se ter uma ideia, o número de cativos embarcados nos navios negreiros portugueses, somente no porto de Mpinda, cresceu de 4 a 5 mil, em 1540, para cerca de 6 a 7 mil, em 1548.Os portugueses eram beneficiários diretos dos lucros dessa atividade comercial.
Vista de ruínas no centro histórico de M’Banza Congo, em Angola. Foto de 2019. A antiga capital do Reino do Congo foi declarada Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco.
Escravidão e resistência no Brasil
Em mais de três séculos de tráfico negreiro, cerca de 10,5 milhões de africanos conseguiram sobreviver às viagens e desembarcar na América. Desse total, quase 5 milhões entraram no Brasil. Comercializados nas praças mercantis de Salvador, Olinda, Rio de Janeiro, entre outras, os africanos foram encaminhados ao trabalho nas lavouras, nas minas, nos serviços domésticos e nas atividades urbanas.
Os castigos físicos faziam parte do cotidiano dos escravizados africanos no Brasil, tanto no campo quanto nas cidades. Em geral, a violência física era aplicada para punir os desobedientes ou que apresentavam baixa produtividade, ao mesmo tempo que servia de exemplo aos demais. Os principais instrumentos de tortura utilizados pelos donos e capatazes eram chicotes, algemas, correntes e palmatórias. Para fugir dos castigos, os escravizados tinham de obedecer às regras impostas pela sociedade escravista.
Diante dessas condições, os africanos escravizados expressaram diferentes formas de resistência. Alguns utilizaram métodos pacíficos, por exemplo, evitando ter filhos ou entrando em um estado de profunda melancolia, chamado banzo, que muitas vezes os levava à morte. Outros reagiram de forma violenta, por exemplo, assassinando feitores, capitães do mato e familiares dos senhores.
Outra forma de resistência era a fuga para cidades distantes, matas ou comunidades de escravizados fugidos, chamadas de quilombos. Porém, fugir dos domínios do senhor era uma empreitada difícil. Assim que a ausência de um cativo era notada, os capitães do mato saíam para capturá-lo e devolvê-lo ao proprietário.
A violência da escravidão explica por que as taxas de mortalidade de africanos eram elevadas no Brasil. Por esse motivo, o tráfico negreiro era uma atividade fundamental na reposição da mão de obra.
Representação atual de quilombo na América portuguesa.
Uma nova identidade cultural
O trabalho escravo foi amplamente empregado na produção açucareira das áreas litorâneas do Nordeste, principalmente entre a segunda metade do século XVI e o século XVII; nas minas de ouro e diamantes em Minas Gerais, no século XVIII; nas lavouras de café do Vale do Paraíba Fluminense e Paulista, no século XIX; na produção de gêneros voltados ao mercado interno; e no comércio e em vários outros ofícios nas cidades de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e outros centros urbanos do Brasil.
Em toda parte, os africanos escravizados também manifestaram resistência cultural, procurando preservar suas tradições e os laços culturais que os uniam à terra natal. Nesse aspecto, as senzalas e os quilombos funcionaram como espaços de convívio social, trocas e criação de novas identidades, construídas a partir das experiências vividas fora da África.
Estima-se que 35 mil viagens de navios negreiros tenham sido feitas entre 1501, data da primeira leva, e 1866, registro do último embarque de cativos na África. Desse total, cerca de 15 a 20 mil viagens tiveram como destino o Brasil. Ao desembarcar nesse território, os africanos escravizados trouxeram no corpo as marcas de sua diversidade étnica e o legado estético da terra de origem: dentes limados, cabelos trançados, tatuagens, marcas de escarificação ritual etc.
Embora vindos de diferentes regiões da África e falando muitas vezes línguas distintas, os africanos puderam, nos espaços de trabalho e convívio no Brasil, praticar o culto aos ancestrais, relembrar costumes e cerimônias religiosas e criar uma cultura que tinha muito do que veio da África, mas também muito do que encontraram na América, e mais ainda do que construíram de novo em terras transatlânticas.
Nesse processo, o ambiente das casas-grandes também foi transformado pela cultura afro-brasileira que então se formava. Como você viu no OED da abertura, o português falado no Brasil, por exemplo, ficou marcado pelas palavras, pela pronúncia e pela musicalidade das línguas da família nigero-congolesa. Na Bahia, local em que houve grande presença africana, desenvolveu-se uma culinária à base de leite de coco, pimenta e azeite de dendê, e os trajes e adereços associados aos orixás das crenças iorubás, vestidos então pelos escravizados, são utilizados até hoje pelas baianas que vendem acarajé e pelos praticantes de candomblé.
Mulheres negras da Bahia. Foto de Alberto Henschel, c. 1870.
Religiosidade e resistência
Até o século XVIII, as religiões de origem africana eram frequentemente chamadas de calundu, termo de origem banta que designa todo tipo de ritual religioso que envolve danças coletivas e músicas, acompanhadas por atabaques, invocação de espíritos, adivinhações, magias e possessão.
As religiões africanas eram vistas pelos cristãos como feitiçaria. Assim, para evitar a perseguição da Igreja Católica, os africanos passaram a associar suas entidades religiosas a santos católicos, criando um sincretismo religioso que preservava, ao menos em parte, suas tradições.
Muitos antropólogos condenam o uso do termo “sincretismo” por considerá-lo sinônimo de submissão do colonizado à cultura do colonizador. Para alguns pesquisadores, no entanto, o sincretismo é um elemento essencial de todas as religiões, no passado e no presente. Ele se manifesta na religiosidade popular, nos conhecimentos que os escravizados trouxeram da África e que seus descendentes adaptaram no Brasil.
“Embora alguns não admitam, todas as religiões são sincréticas, pois representam o resultado de grandes sínteses integrando elementos de várias procedências que formam um novo todo. [...] o sincretismo está presente tanto na umbanda e em outras tradições religiosas africanas, quanto no catolicismo primitivo ou atual, popular ou erudito, como em qualquer religião.”
FERRETTI, Sérgio E. Sincretismo afro-brasileiro e resistência cultural. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 183, jun. 1998.
Celebração de Congada em Ouro Preto (MG), em 2015. Nessa festa popular afro-brasileira, as irmandades de negros encenavam a coroação do rei do Congo e da rainha Njinga, embalados por músicas e danças. Celebrada em diversas partes do Brasil, a Congada adquiriu características de cada local do país.
O movimento negro no Brasil
Abdias do Nascimento (1914-2011), sociólogo e ativista do movimento negro no Brasil, cumpriu um papel fundamental para a reflexão e a ação dos afrodescendentes na sociedade brasileira. Foi diretor-fundador do Teatro Experimental do Negro, dirigiu o jornal Quilombo entre 1948 e 1951 e contribuiu para a organização do Primeiro Congresso do Negro Brasileiro, em 1950.
Como deputado federal e senador, dedicou sua atividade pública à luta contra o racismo e à criação de políticas afirmativas para a população afrodescendente.
Abdias do Nascimento é homenageado na cerimônia de abertura da II Conferência de Intelectuais da África e da Diáspora. Salvador, Bahia, julho de 2006.
Capoeira: resistência e sociabilidade
A roda de capoeira é uma manifestação cultural afro-brasileira que desde 2014 é reconhecida pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Mistura de dança, luta e jogo, a capoeira é praticada por crianças, jovens e adultos em todo o Brasil, com variações regionais.
Há muitas hipóteses sobre a origem da capoeira, mas nenhuma certeza. Os primeiros registros dessa prática datam do início do século XIX na cidade do Rio de Janeiro. Documentos posteriores sugerem a presença de capoeiristas em Salvador, Recife, Belém e São Luís. Era basicamente uma técnica de combate, praticada principalmente por negros libertos e escravizados. Associada à vadiagem e aos negros, a capoeira foi perseguida e reprimida pelas autoridades, e apenas nos anos 1930 se tornou reconhecida pelo Estado brasileiro.
“A capoeira podia ser praticada como luta, dança, brincadeira ou passatempo. Perigosa, representava uma ameaça não apenas por causa dos constantes enfrentamentos entre grupos de capoeiras e forças de repressão, mas por ser uma afronta à população, uma vez que fazia das ruas da cidade palco para que uma população escrava […] exibisse abertamente e com desenvoltura a sua presença e capacidade de se divertir, brigar e resistir.”
GOUVÊA, Viviane. Quilombos e revoltas de escravos. O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira, 24 jan. 2017. Disponível em <http://mod.lk/qqujs>. Acesso em 9 mar. 2020.
Jogar capoeira ou Dança da guerra, pintura de Johann Moritz Rugendas, 1835.
Aula 01 - Escravidão africana no Brasil - Povo iorubá.
Aula 02 - Escravidão africana no Brasil - O povo banto.
Aula 03 - Escravidão e resistência no Brasil colonial
Próxima aula
Escravidão no Caribe e nos Estados Unidos
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