O Antigo Regime em crise na Europa - O século das luzes: o iluminismo
A sociedade europeia do Antigo Regime
Na Europa moderna, práticas e costumes feudais conviviam com mudanças profundas na sociedade. Por isso, é comum identificar a época moderna como um período de transição entre a Idade Média e o mundo que surgiu das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII.
A sociedade europeia desse período, conhecida como Antigo Regime, era hierarquizada e estamental. O clero e a nobreza formavam os estamentos dominantes. Eles eram grandes proprietários de terra e estavam isentos de muitos impostos. O restante da população era formado de camponeses, trabalhadores urbanos e burgueses, que pagavam altos impostos para sustentar o luxo das cortes. Entre os burgueses, havia desde artesãos e pequenos lojistas até banqueiros e proprietários de grandes manufaturas.
A origem de cada indivíduo determinava sua posição na sociedade e seus privilégios. Um nobre nascia com privilégios herdados da família, enquanto um artesão ou um lojista tinha muita dificuldade de enriquecer e conquistar prestígio social. Apesar disso, muitos burgueses enriquecidos conseguiam comprar títulos de nobreza, o que lhes conferia distinção em relação aos demais.
Politicamente, a característica que marcou a Euro- pa moderna foi a centralização do poder na figura do rei. Na França, por exemplo, o fortalecimento do poder real consolidou-se com o absolutismo, regime em que o poder de governar, elaborar leis e fiscalizar o seu cumprimento concentrava-se nas mãos do rei. Na Inglaterra, a tentativa de instaurar um poder absoluto foi uma das principais razões da revolução que eclodiu em 1640.
Nobres franceses representados em gravura de Henri Bonnart, século XVII. Pintor e gravurista francês, Bonnart dedicou-se a retratar os costumes e a vida social da corte francesa do Antigo Regime.
O pensamento iluminista
As reações à sociedade do Antigo Regime aconteceram no campo das ideias e no campo da ação revolucionária. No primeiro caso, os agentes históricos eram pensadores de várias áreas do conhecimento, principalmente filósofos, que faziam parte de um movimento intelectual conhecido como iluminismo ou ilustração.
Apesar das diferenças entre os pensadores iluministas, eles partilhavam pontos em comum: a valorização da razão como principal instrumento do ser humano para compreender a realidade e orientar a vida em sociedade; a crítica ao fanatismo religioso, ao poder da Igreja e aos privilégios da nobreza; e a defesa da liberdade religiosa e das liberdades em geral. Os iluministas pregavam que só era possível conhecer a realidade por meio da investigação, da experimentação e da observação dos resultados das experiências.
Os pensadores iluministas também defendiam que os homens, em seu estado de natureza, deveriam ser livres e iguais. Por essa razão, eles condenavam os privilégios determinados pela condição de nascimento ou familiar, uma das características do Antigo Regime. Porém, os iluministas não tinham a mesma visão sobre a desigualdade entre aqueles que enriqueciam e adquiriam propriedades e aqueles que se mantinham pobres.
O inglês John Locke, por exemplo, defendia que o homem tem o direito de ser livre para prosperar por meio do seu trabalho. O franco-suíço Jean-Jacques Rousseau, com outra visão, afirmava que a desigualdade era fruto do direito à propriedade, que teria sido a origem de todas as guerras, crimes e misérias da história humana. Não vendo como recuperar a igualdade natural perdida, Rousseau propunha a criação de meios para tornar a existência humana mais suportável.
No campo da ação revolucionária, o primeiro choque que abalou as bases do Antigo Regime aconteceu com as Revoluções Inglesas do século XVII. O resultado foi a vitória do Parlamento sobre o absolutismo real, o fim das restrições à liberdade econômica e a instauração da tolerância religiosa. Mas foi na França do século XVIII que o iluminismo atingiu o seu auge. As ideias da ilustração inspiraram os revolucionários de 1789 e se difundiram por outros países e continentes, influenciando a política, a economia, a educação, a cultura e a arte do mundo ocidental.
Gravura do século XVIII representando o filósofo iluminista Voltaire sentado à sua mesa. O termo “iluminismo” originou-se da ideia de que a Europa viveu um longo período de trevas, a Idade Média, resultado do controle da Igreja sobre a cultura e a sociedade. Na visão dos iluministas, só a razão poderia colocar a história humana no caminho da luz
A razão como guia do ser humano
Na visão iluminista, a razão era a única ferramenta de que o ser humano dispunha para compreender e transformar o mundo. Isso significa que, em vez de guiar-se pelas superstições e crenças místicas, os indivíduos deveriam orientar suas vidas de acordo com as ferramentas da ciência.
Conheça, a seguir, alguns dos principais pensadores iluministas e as ideias que eles defendiam.
John Locke (1632-1704). O filósofo inglês defendia que a liberdade, a felicidade e a propriedade são direitos naturais do homem. Visando proteger esses direitos, os indivíduos estabeleceram um pacto com um corpo político que está acima deles. Em outras palavras, eles aceitaram transferir parte da sua liberdade aos governos, que têm a força coercitiva, em troca de segurança. Os governantes, porém, poderiam ser destituídos caso não correspondessem aos interesses coletivos.
Charles-Louis de Secondat (1689-1755). O barão de Montesquieu, como ficou conhecido, defendia a liberdade dos indivíduos, que seria assegurada por um conjunto de leis, e a criação de três poderes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. O primeiro seria responsável pela administração pública, enquanto o segundo criaria as leis e o terceiro teria o poder de julgar os conflitos e aplicar as punições. Segundo ele, essa tripartição coibiria o abuso de poder por parte dos governantes e permitiria maior equilíbrio entre as esferas de poder. Dessa forma, a separação dos poderes impediria o surgimento de regimes despóticos, como o absolutista.
François-Marie Arouet (1694-1778). Conhecido como Voltaire, o filósofo francês criticou em suas obras o absolutismo monárquico, o fanatismo religioso e a Igreja Católica. O autor foi um defensor incansável da liberdade política e da razão como meio de livrar o povo da superstição e da ignorância. Apesar de suas ideias, que o levaram a se exilar na Inglaterra, Voltaire se posicionava a favor da monarquia; não da absolutista, mas sim de um governo monárquico orientado pelos ideais iluministas.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Iluminista radical, afirmava que todo governo deveria subordinar-se à vontade soberana do povo, pois o poder pertence ao povo. Também acreditava que o ser humano, naturalmente bom, foi desvirtuado pela sociedade. Um dos caminhos para libertar os homens dos vícios sociais seria a educação. A criança deveria ser educada com liberdade, de acordo com sua própria natureza, para tornar-se um adulto bom.
Na obra Emílio, ou Da educação, uma espécie de romance pedagógico, Rousseau desenvolve sua visão a respeito do papel da educação no desenvolvimento do indivíduo. Segundo ele, crianças educadas com liberdade e constantemente estimuladas com perguntas crescem felizes, boas e capazes de questionar o mundo.
“Amai a infância; favorecei suas brincadeiras, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não teve alguma vez saudade dessa época em que o riso está sempre nos lábios, e a alma está sempre em paz? Por que quereis retirar desses pequenos inocentes o gozo de um tempo tão duro que lhes foge, e de um bem tão precioso, de que não poderiam abusar? Por que quereis encher de amargura e de dores esses primeiros anos tão velozes, que não mais voltarão para eles, assim como não voltarão para nós? [...] fazei com que, a qualquer hora que Deus os chamar, não morram sem ter saboreado a vida.”
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou Da educação. In: SOËTARD, Michel (Org.). Jean-Jacques Rousseau. Brasília: MEC; Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 2010. p. 54-55. (Coleção Educadores)
Da esquerda para a direita, caricaturas atuais dos filósofos iluministas John Locke, Montesquieu, Voltaire e Jean-Jacques Rousseau.
A Enciclopédia
A preocupação dos iluministas em divulgar o conhecimento formalizado pela ciência levou o filósofo Denis Diderot (1713-1784) e o matemático Jean D’Alembert (1717-1783), ambos franceses, a organizar a Enciclopédia. Por essa razão, os iluministas também ficaram conhecidos como enciclopedistas.
A Enciclopédia foi produzida por diversos intelectuais, editores, resenhistas e ilustradores. Nela pretendia-se resumir todo o conhecimento ocidental existente até aquele momento, expor os avanços técnicos e científicos do século XVIII e reagir a determinadas imposições religiosas, tratadas, na obra, como superstições.
Tirinha de Armandinho, do cartunista Alexandre Beck, 2017.
Atitude historiadora
A autoridade política na Enciclopédia
Leia a seguir um trecho do verbete “autoridade política”, que integra a Enciclopédia, publicada na França entre 1751 e 1780.
“Nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar os outros. A liberdade é um presente do céu, e cada indivíduo da mesma espécie tem o direito de usufruir dela tão logo tenha o uso da razão. Se a natureza estabeleceu alguma autoridade é a do poder paterno [...]. Se examinarmos bem, veremos que a autoridade política tem origem em uma destas duas fontes: a força e a violência daquele que dela se apoderou ou o consentimento daqueles que a ela se submeteram através de um contrato, celebrado ou suposto, entre estes e aquele a quem concederam o poder.
O poder adquirido pela violência não é senão usurpação, e só dura enquanto a força daquele que comanda for maior do que a daqueles que obedecem. [...]
O poder que vem do consentimento dos povos supõe necessariamente condições que tornem seu uso legítimo, útil à sociedade, vantajoso para a república, e que o fixem e restrinjam dentro de certos limites. Pois o homem não pode nem deve dar-se inteiramente e sem reserva a um outro homem, já que tem um mestre superior que está acima de tudo, a quem pertence inteira e exclusivamente. Trata-se de Deus [...]. Ele permite, para o bem comum e para a manutenção da sociedade, que os homens estabeleçam entre si uma ordem de subordinação e que obedeçam a um deles. Mas quer que isto seja feito por razão e com medida, e não de maneira cega e sem reserva, a fim de que a criatura não se atribua impropriamente direitos do criador.”
DIDEROT, Denis. Autoridade política (verbete). In: D’ALEMBERT, Jean le Rond; DIDEROT, Denis (Orgs.). Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. São Paulo: Unesp, 2015. v. 4. p. 38.
Luzes na educação
Críticos da influência política e cultural da Igreja, muitos iluministas eram contrários ao ensino religioso e à administração das escolas por instituições religiosas. Pensadores do período, como o filósofo e matemático francês marquês de Condorcet (1743-1794), defendiam que a educação elementar deveria ser obrigatória, dirigida pelo Estado e gratuita para todos. Propunham uma educação laica, com um currículo escolar independente de qualquer crença religiosa e orientado para o estudo das ciências, dos ofícios e das técnicas.
Esses princípios educacionais foram implantados na Europa ao longo dos séculos XVIII e XIX. Contudo, apesar de o iluminismo defender a extensão do ensino a todos os cidadãos, prevaleceu a divisão entre uma escola voltada para os burgueses e outra voltada para o povo.
Escola de ensino mútuo, gravura francesa do século XIX.
O liberalismo econômico
No campo da economia, destacou-se o pensador escocês Adam Smith (1723-1790). Sua obra Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, publicada em 1776, tornou-se a base do liberalismo econômico.
Criticando os fundamentos do mercantilismo, Smith defendia a livre-iniciativa individual e o fim da intervenção estatal na economia, política que era adotada pelos reinos mercantilistas. Sem o controle do Estado, o mercado se autorregularia, orientado pela lei da oferta e da procura.
O despotismo esclarecido
Inspirados pelas correntes de pensamento liberais e ilustradas, diversos monarcas europeus procuraram, na segunda metade do século XVIII, modernizar seus Estados. Entretanto, isso não significava maior liberdade e participação política do povo. O objetivo era promover reformas que tornassem a administração do reino mais eficiente e, ao mesmo tempo, preservassem a ordem social e o absolutismo monárquico.
Esses reis ficaram conhecidos como déspotas esclarecidos. Entre eles estão a rainha Catarina II, da Rússia, e os reis José I, de Portugal, Frederico II, da Prússia, José II, da Áustria, e Carlos III, da Espanha.
Carlos III, por exemplo, buscou aproximar seu reino das transformações modernizadoras em curso em outras partes da Europa. Ele empenhou-se em estreitar o controle administrativo e fiscal sobre as colônias espanholas na América, expulsando os jesuítas desses territórios, instituindo novos impostos e criando o Vice-Reino da Prata. Com isso, pretendia criar condições para dinamizar a dependente economia espanhola.
Outra crítica de Smith ao mercantilismo era a crença de que os metais preciosos simbolizavam a riqueza dos Estados. Em lugar de ouro acumulado, ele acreditava que a verdadeira fonte geradora de riqueza de uma nação era a capacidade de produzir e comercializar mercadorias agrícolas e manufaturadas.
Em um período de crescimento econômico na Europa, as ideias de Adam Smith se difundiram facilmente entre a burguesia, que via a oportunidade de prosperar com a liberdade de produção e de comércio.